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Especial Jovem Cinema Paulista dos anos 80

Aloysio Raulino

Noites Paraguayas
Direção: Aloysio Raulino
Brasil, 1982.

Por Cid Nader, especialmente para a Zingu!*

Egresso do cinema da “Boca do Lixo” paulistana, o grande - e reconhecível pelos resultados técnicos - fotógrafo Aloysio Raulino, andou também investindo na arte de dirigir (e co-dirigir) filmes, quase sempre no formato curto – isso, desde o final dos 60, início dos 70. Peculiar como fotógrafo, peculiar como realizador. Fez documentários, deu a voz e a câmera aos entrevistados, ousou a mais do que a coragem comum permite quando da confecção de seu único – até hoje, 2009, evidentemente – trabalho em longa-metragem. Falar da figura do fotógrafo e realizador de vários filmetes é tarefa a ser cumprida por quem tenha tino e consciência da importância dele em nosso cinema. Falar que ele talvez seja nosso melhor fotógrafo, também demandaria espaço único. Talvez faça, breve, tal empreitada, mas sem jamais esquecer o impacto e a emoção sentidos no momento em que vi pela primeira vez seu longa único, o estupendo, engraçado, singelo, Noites Paraguayas (1981-1982). Havia feito um texto para a extinta Revista Paisà, e aproveito aqui a espinha daquela minha avaliação sobre o filme.

Quando o vi numa mostra chamada O Primeiro Olhar, se não me engano, realizada no Cinesesc (São Paulo) – mostra dedicada a diretores de um único longa-metragem - percebi que havia acabado de assistir a uma obra ímpar. Filme que, já de cara, ganhava pontos por fugir da mesmice narrativa – uma facilitação utilizada por diretores iniciantes como muleta ante o medo de um primeiro tropeção -, no qual Raulino não teve medo de ousar esteticamente, para contar uma história que remete a um dos grandes dramas humanos: o homem do campo que foge da miséria para tentar uma nova oportunidade, fracassa (ou não se acostuma) e volta à origem. Tema recorrente no cinema (nas artes literárias, também), história das mais utilizadas universalmente, mas observada aqui com atenção detalhada ao personagem que vem do Paraguai para tentar a vida no Brasil – em São Paulo, mais especifica e necessariamente -, e aditivada de um humor singular (principalmente na figura do garçom meio maluquinho interpretado por José Dumont), que remete ao modo meio jocoso/largado do nosso cinema Boca do Lixo.

Cheio de imaginação, o filme já inicia mostrando uma fileira de bonecos com roupas de camponeses, cercados por uma chama propositalmente fake, numa evidente metáfora de um país e seu povo, empobrecidos, estraçalhados pela guerra ocorrida no século XIX. Aloysio, desde o início, faz perceber que seu trabalho não se instalará sobre – nem se municiará de – elementos comuns e de fácil assimilação para quem procura beleza plástica fugaz e vazia. Indo além, e fugindo ainda das “normalidades”, cria o gancho da atração para o camponês, interpretado por Osmar Afrisio, via imagem de um brasileiro muito alegre dançando e vibrando em terras de transição – no momento em que a jornada de busca por uma vida melhor já se iniciara, sem que o rumo certo, o destino ideal, estivesse definido.

Como fotógrafo que é, o diretor contou muito de sua história via imagens: após a escolha do camponês ter recaído sobre São Paulo, é criada uma “chegada triunfal” dele ao centro da cidade – caótico e seco - , quando a câmera o filma "flutuando" no meio da multidão. Como fotógrafo que é, capricha na descida de trem para o litoral e o primeiro contato com o mar, sendo que nesse momento já havia uma espécie de integração em estado adiantado com gente nova, em terra nova – há amigos novos, possíveis amores, enganadores, e os músicos, como os maiores e mais notáveis elementos físicos de ligação, de não rompimento, com a terra natal.

Também, com o olhar de quem está acostumado a ver um filme por trás das lentes, cria uma cena com soldados paraguaios mortos sob um clamor a Solano (Lopes) para que proteja um filho – fazendo esse momento um elemento cenográfico no modo quase estático, paradoxalmente lembrando coisas de teatro -, com força visual ideal para que se note o poder e a importância de um diretor que sabe manejar sem medo as câmeras. Como Raulino evidentemente havia pensado num mote de forte clamor humano, de forte apego às raízes, ele utiliza - e de forma bastante significativa e recorrente - a música paraguaia e os diálogos em guarani: se disse acima que os músicos que executam as músicas seriam um “elemento físico de forte ligação”, a complementação desses elementos com os diálogos na língua nativa, aumentam a resistência dos elos, fazendo deles algo muito mais importante como seria o cordão umbilical que não quer romper.

Por alguns instantes há aquele tom jocoso, debochado, irregular e necessário que desvia o filme do teor grave imaginado como único caminho para esse tipo de história: como já disse, brinde e bênçãos herdados dos tempos da “marginalidade”. O filme questiona a busca da felicidade: a chegada do camponês a São Paulo, embalada por música de Moraes Moreira, já elucida que a visão do novo mundo – repleta de prédios e cinza – pode significar a antevisão do paraíso para os desesperançados; para após, sim, deixar claro que ele existe sim, mas lá nos campos de seu Paraguai. Aqui não é o paraíso. O banzo não é exclusividade dos negros. Aloysio Raulino deveria fazer mais filmes.

P.S.: vale dizer que Raulino dirigiu um episódio, A Santa Ceia, que fazia parte do longa, Vozes do Meio, em 1970.

*Cid Nader é jornalista e editor do site Cinequanon.



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