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Dossiê Cinema de Bordas

Entrevista com Bernadette Lyra

Por Gabriel Carneiro

Bernadette Lyra é professora e coordenadora do Mestrado em Comunicação da Universidade Anhembi-Morumbi. Com extensa vida acadêmica (é pós-doutora pela Sorbonne, na França), Bernadette, nos últimos anos, passou a se dedicar à pesquisa do cinema rejeitado pela academia e pela crítica. Ela, junto de outros sete pesquisadores, chegou ao termo Cinema de Bordas para denominar a produção brasileira de ficção feita independentemente, com baixo orçamento, que não chega ao circuito comercial e mantém uma relação muito forte com o cinema de gêneros, aproveitando-se de estética e situações para reproduzir em seu cinema e assim criar um novo produto.

Sobre o Cinema de Bordas, já organizou um livro, Cinema de Bordas, com Gelson Santana, de 2006, pela Editora A-Lápis, para aonde também escreve, falando do cinema do Ivan Cardoso. Em 2008, foi lançado o livro Cinema de Bordas 2, organizado só por Gelson Santana dessa vez, mas contando com um texto de Bernadette sobre o cinema artesanal de Seu Manoelzinho (Manoel Loreno). Fez a curadoria da mostra Nas Bordas do Cinema, na Anhembi-Morumbi, em 2008, e nesse ano, no Itaú Cultural, a mostra Cinema de Bordas, em que divide os créditos com Gelson Santana.

Bernadette é uma das mais entusiasmadas para falar dessas produções (se não a mais empolgada). Em entrevista para a Zingu! , Bernadette conta um pouco com se dá o estudo dessas produções e quais suas particularidades, além de explicar o conceito Cinema de Bordas.

Zingu! - Quando começou o interesse pelo Cinema de Bordas? Por quê?

Bernadette Lyra - Tudo começou no ano 2000, quando dei início a umas pesquisas sobre as chanchadas. Eu não podia entender como um cinema que arrebanhava tanto público podia ser menosprezado pelos críticos e pesquisadores acadêmicos. Eu mesma era louca por aqueles filmes de histórias mirabolantes, recheados de números musicais e sem pretensões maiores que divertir os espectadores. Mas, o que mais me encantava nas chanchadas era a ingenuidade e a ironia. Eu tinha, também, predileção especial pelos filmes de Ivan Cardoso, especialmente aqueles de ficção em que ele mistura horror, humor e sexo. E comecei a estudá-los, junto das chanchadas. Na busca por bibliografia para tais estudos, achei um artigo esplêndido de Jerusa Pires Ferreira: Heterônimos e cultura das bordas, que foi publicado em 1990, em uma revista da USP. O artigo era sobre a literatura de Rubens Francisco Lucchetti, o parceiro mais pontual de Ivan. Encontrei, também, na revista Screen, um artigo de 1995, sobre paracinema assinado por Jeffrey Sconce. Então, comecei a pensar que o conceito de uma cultura mista, vindo da antropologia, podia ser passado pelo crivo da estética trash. Resolvi experimentar essa minha teoria maluca, aplicando-a aos estudos cinematográficos, para ver no que dava. Creio que foi dessa mistura explosiva que saiu aquilo que, hoje, eu e meu grupo de pesquisa estamos chamando de Cinema de Bordas.

Z - O que é exatamente o cinema de bordas?

BL – O cinema de bordas não é um movimento cinematográfico, como se pode falar do Cinema Marginal ou do Cinema Novo. Também não é um modelo a ser cristalizado. Antes de tudo, cinema de bordas é um modo de conceituar todo um tipo de produção cinematográfica ou audiovisual que constitui um universo paralelo ao mundo do cinema institucionalizado pela historiografia cinematográfica tradicional, ou seja, por aquela historiografia que foi, em boa parte, pautada na autoria e na noção do “bom”, do “belo” e do “artístico”. Esse universo paralelo é heterogêneo, apresentando variantes. Mas, em todas essas variantes, podem ser encontrados os traços do que é rejeitado, menosprezado ou considerado “lixo” ou “restos” ou “trasheira”, pelos estudos cinematográficos ditos “legítimos”. Justamente são esses traços “malditos” que formam o caráter de segunda mão e que caracterizam os filmes de bordas. Um exemplo disso é o modo como os realizadores de bordas se relacionam com os chamados “gêneros” tradicionais. Os filmes de bordas têm um modo especial de usar esses gêneros, exercitando uma verdadeira chupação, miscigenação e pilhagem de outros filmes e de outros produtos, sempre com base no que já foi visto e já foi repassado pelo crivo dos meios audiovisuais massivos. Além disso, são filmes que não se envergonham da sua precariedade técnica e de seu baixíssimo orçamento. Existe mesmo um tipo específico de cinema de bordas que é produzido por realizadores autodidatas, moradores de cidades pequenas ou de arredores das grandes capitais. Esses filmes têm grande sucesso de público pelas suas características. Eles são voltados para o entretenimento e adaptados às regiões, ao modo de vida, às lendas e ao imaginário popular e massivo das comunidades envolvidas no processo de sua produção. Por isso, os filmes de bordas tendem para os estereótipos, mas são incrivelmente deliciosos e recreativos, além de re-criativos.

Z - Pode-se dizer que fazem um cinema de gênero?

BL - Um dos "traços" mais importantes é o modo (veja bem, "o modo") com que certos realizadores fazem uso dos gêneros cinematográficos. Por exemplo, o modo com que o Joel Caetano faz seus filmes de terror, aproveitando-se de imagens já vistas e batidas nesse tipo de filmes, ou o modo com que Seu Manoelzinho faz seus filmes de faroeste, também se aproveitando de cenas e estereótipos que ele viu em velhos filmes do tipo e em seriados de televisão. Importante é dizer que é por isso que não cabe, puramente, o termo "cinema de gêneros", pois é o uso em segunda mão, ou seja nas "beiradas" do que já foi constituído como "gêneros ", é que dá a esses filmes o caráter de cinema de bordas. Claro que tem muitos mais "traços": é o que faz o cinema de bordas ser um fenômeno tão delicioso e tão digno de estudos.

Z - A quando se remonta sua origem no Brasil? E com quem?

BL – Dentro do que acabei de falar, você pode ver que não há uma linha cronológica para que se estabeleça o começo do cinema de bordas. Ele começa no momento em que a gente se interessa por esse conceito específico de algo periférico e começa a ver, em certos filmes, os traços de produção, realização e de recepção que constituem as escolhas desse universo cinematográfico paralelo, ou melhor, feito às bordas. Os estudos de cinema de bordas estão mais para o campo da estética cinematográfica, com todas as injunções e repercussões de sociedade e cultura regionais que envolvem o país, de que para a história do cinema brasileiro.

Z - Como funciona o mapeamento dessas produções, já que a divulgação é praticamente local (na cidade ou no bairro produzido) ou pela internet?

BL - Participo do grupo que se dedica aos estudos do cinema periférico de bordas. Não posso deixar de citar meus companheiros: Alfredo Suppia, Gelson Santana, Laura Cánepa, Lucio Reis, Rogério Ferraraz, Rosana Soares e Zuleika Bueno. Todos nós vivemos na caçada a esses filmes incríveis espalhados de norte a sul do país. A Internet ajuda muito. Mas, contamos também com a generosidade e a boa vontade de muita gente que atua em outros meios de comunicação e de professores das universidades que, muitas vezes, nos põem em contato com os realizadores mais distantes, que, às vezes, nem e-mail têm.

Z - Estima-se que existem quantas pessoas fazendo cinema de bordas no Brasil de hoje?

BL - Ah, deve haver muita gente Já organizamos duas Mostras, uma na Universidade Anhembi Morumbi (2008) e outra no Itaú Cultural (2009) e também já publicamos dois livros, Cinema de Bordas (2006) e Cinema de Bordas – 2 (2008). A cada dia descobrimos mais realizadores e mais filmes que se encaixam no perfil de nossos estudos. Alguns têm formação de cinema, mas optam por fazer esse tipo de produção às bordas; outros são pedreiros, lavradores, serralheiros, ajudantes de enfermaria, camelôs e outro tanto, mas ser cineasta é o título que mais desejam. Em geral, no cinema de bordas, os realizadores escrevem, roteirizam (quando há um roteiro), produzem, dirigem e, de quebra, atuam também.

Z - Pode-se fazer um paralelo com o chamado cinema marginal, que nos anos 60/70, chamou muita atenção para o cinema experimental, independente?

BL – Tenho um carinho especial pelo cinema marginal. Júlio Bressane, aliás, foi meu objeto de tese de doutorado na ECA/USP. O cinema marginal nasceu do contato com a estética experimental e do lastro deixado pelas vanguardas. No Brasil, o cinema marginal, ou udigrudi, ganhou força a partir de 1967, no rastro do undergroud norte-americano e produziu importantes obras em contraposição aos padrões do movimento cinemanovista. Os quatro grandes critérios do cinema marginal são: produção artesanal, distribuição própria, finalidade de fruição e estética próxima à música e à poesia. Mas, o cinema de bordas, apesar das mesmas condições de filmagem e de produção, não apresenta as características de fruição poética, nem a mesma vertente estética do cinema marginal. A meu ver, a maior diferença está em que, no cinema de bordas, não se encontra a disposição para a “novidade” do cinema experimental. Os modos narrativos dos filmes de bordas estão voltados para a ficção e, sobretudo, para a repetição das formas já usadas e reusadas pelo cinema e pelos meios audiovisuais massivos, sempre com um pé na comédia, no horror, na ficção científica, no faroeste, no melodrama e em outros gêneros e subgêneros considerados de gosto e de consumo populares.

Z - Por que a preferência pelo terror, na maioria dos casos – ao menos, o flerte com o gênero?

BL – O terror representa um dos lados de uma trilogia da parte maldita no cinema. O humor e o sexo são os outros. Assim, nada mais apropriado que os filmes de bordas adorem falar de vampiros, zumbis, comedores de carne, almas penadas, e tantas outras criaturas que não respeitam os limites daquilo que é considerado “certinho” ou “normal”.

Z - Pelos poucos recursos, às vezes até pelo amadorismo, fazer filmes sérios acaba sendo muito difícil. Por isso, não se levar a sério é uma saída?

BL - Já ouvi muitos realizadores de filmes de bordas dizerem que fazem seus filmes “a sério”, mas que o público ri, e que, portanto, eles aceitam as risadas do público. Isso revela uma respeitável tremenda sabedoria.

Z - Como as novas tecnologias permitiram o acesso a esse cinema?

BL - É claro que a multiplicação e o rápido barateamento de câmeras e aparelhos de captação de imagens e sons permitem que qualquer pessoa que ame o cinema e tenha desejo de exercitar seus dotes de realizador possa ter acesso ao registro e divulgação de filmes.

Z - O Cinema de Bordas é uma escolha dos envolvidos, ou é a simples falta de recurso e muita vontade de fazer cinema?

BL - Creio que é uma mistura de todas essas coisas. Além de “otras cositas” como o desvario, a força de vontade pessoal e a paixão.

Z - Pode-se dizer que o futuro do cinema está nesse tipo de produção?

BL - Sinceramente, sou péssima em futurologia. Mas, onde houver amor a essa coisa alucinante e maravilhosa que se chama cinema, e houver acesso a um dispositivo de gravação e de reprodução de sons e imagens, com certeza, aí estará o terreno propício para um filme, ainda que esse filme se faça nas bordas.




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